"Eu não sou uma sonhadora. Só devaneio para alcançar a realidade!" C.Lispector

sexta-feira, 17 de agosto de 2012


Não se sabe ao certo como aconteceu, sabe-se que Maria não era mulher de andar à noite sozinha, na verdade, nem acompanhada. E olha, vou lhe dizer o porquê:  a noite já era, por si só, sua mais frequente e melhor companhia. Maria a namorava pela janela, seu coração baria tão forque quando se dava conta da imensidão e da vastidão infinita contidas no breu noturno, que pensara estar apaixonada.
Seu vizinho Mané, também pensou estar apaixonado. Olhava da varanda todo dia Maria, e seu coração batia tão forte quanto sua mão batia a sagrada punheta diária. Pararia com a mão, mas nunca largaria mão da musa da janela. E que tanto fazia na janela se não fumava, não ia para a gandaia, nem ao menos olhava em direção à Lua? Mané se descabelava, subia pelas paredes, descia as escadas às pressas para encontrar com ela quando a via saindo. Mas nunca conseguia olhar em seus olhos negros como a noite adorada. Para ele, era dia demais.
Maria não se contentava, descontrolada, querendo a noite mais que a cama, saiu para dançar com sua dama favorita. Uma vez uma colega do trabalho lhe disse para não sair depois do escurecer, mas maria não entendia porque, há tempos não existia toque de recolher. Lhe dizia que o machismo tinha se tornado tão arraigado na sociedade que uma mulher não podia sair só, não podia desfrutar da rua e da vida como bem entendesse. Mas a vontade de ser livre foi maior, cansou de só ver o mundo pela janela: desceu as escadas e foi.
Sentindo a brisa suave batendo em seus cabelos ensebados por falta de banho, o cheiro maravilhoso da noite de verão adentrando suas narinas, ela chegou a conclusão que nunca se sentiu tão bem, tão humana, tão feliz, tão leve. Até que sentiu uma mão adentrar seu vestido. Lhe amassar na parede, violentar sua simples vontade de anoitecer.
Maria anoiteceu, mas não da forma que queria: obscureceu por dentro, o coração apodreceu e contaminou a carne. Agora, a noite lhe causava medo, asco, ânsia.
Dormia de luz acesa
e já não olhava pela janela.
Não se sabe ao certo como aconteceu, sabe-se que Maria nunca mais amanheceu.

2 comentários:

  1. A liberdade, a tão sonhada liberdade.
    Somos prisioneiros da cidade, trancados a sete chaves, com cadeados, sensores e alarmes. Adianta ser livre e viver preso?
    Maria... somos nós!

    Intensamente belo!
    Bjooo

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  2. Um conto que faz doer...mas muito bem escrito!

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"Eu vou me acumulando, me acumulando, me acumulando - até que não caibo em mim e estouro em palavras." - C. Lispector